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AS MANIFESTAÇÕES DA ACÉDIA (Continuação) - Por Dom João da Cruz


Este artigo faz parte da Série: Acédia - O Mal desconhecido do nosso tempo (Terceira parte)




Evágrio não intenta dar uma definição da acédia, senão oferecer uma detalhada descrição, desenhar um retrato cheio de humor do monge que sofre deste mal.

O demônio da acédia, chamado também de demônio do meio dia, é o mais grave de todos; ataca o monge por volta da quarta hora e cerca sua alma até a oitava hora. Primeiro ele faz imaginar que o sol avança pouco, ou que não se move, e que o dia parece ter cinquenta horas. Logo o leva a olhar continuamente pela janela, a sair da cela, a olhar ao sol para ver se está longe da hora nona, a olhar aqui e acolá buscando algum dos seus irmãos... Ademais desperta nele a aversão ao lugar em que se encontra, ao seu estado de vida, ao trabalho manual e inclusive, o faz imaginar que desapareceu a caridade entre os irmãos, que não há nada que o console. E se esses dias alguém o teria dado desgosto, também se serve dele o demônio para aumentar o seu cansaço. E o leva a pensar em um outro lugar onde possa encontrar o que necessita, um trabalho menos pesado e com mais janelas e o persuade que para agradar a Deus não é questão de lugar: pois certamente, se diz, Deus pode ser adorado em todos os lugares. A isto é adicionado a lembrança de sua família e de sua vida anterior e o faz imaginar o quanto a vida é longa, recalcando os rigores da ascese e por assim dizer, serve-se de todos os meios para que o monge abandone a cela e renuncie a luta.

Parece que Evágrio é o primeiro autor que identifica o demônio da acédia com o demônio do meio dia do salmo 90,6 porque ataca o monge, diz desde a hora quarta até a oitava hora quer dizer, durante o meio dia. De verdade a imagem bem escolhida e resulta expressiva para quem já viajou pelo Oriente. O tempo que vai das dez até as duas da tarde é um tempo morto da jornada. É o tempo do calor e da fome. O homem perde todas a vontade de fazer alguma coisa. É então quando aparece o demônio do meio dia. Com o mesmo calor, torna-se pesado afundando a sua vítima na sonolência e no torpor. Evágrio no capítulo 14 do seu tratado sobre os oito espíritos de malicia, descreve, não sem humor, este aspecto que faz que o demônio da acédia possa ser considerado como o sucessor do espírito do sono (hypnos): “Quem padece da acédia tende a olhar pela janela com frequência e sonha com as visitas. Se range a porta, se sobressalta. Se escuta uma voz, olha para fora da janela. E não a abandona até que cansado se senta. Quem padece de acédia boceja muito quando lê e com frequência o domina o sono. Esfrega os olhos, estira os braços e deixa de ler o livro. Olha a parede e logo volta um pouco a sua leitura. Repassa as páginas e perde o tempo pensando no final do texto. Conta as horas, calcula o número de livros. Queixa-se da escritura e da ornamentação. E ao final, fecha o livro, coloca a cabeça em cima do mesmo e dorme, porém sem entrar em um sono muito profundo, porque a fome acaba por despertá-lo e volta-se a preencher-se com preocupações.”

Certamente está descrição está condicionada por um estilo de vida bem determinado, do solitário que vive no deserto. O peso do calor junta-se ao monge em um tédio e torna difícil especialmente a sua solidão. A fadiga e o aborrecimento em seguida são adicionados a relutância e a aversão sentida pelo monge de sua cela, pelo seu trabalho manual e até por sua própria vida; pensa em outros lugares onde se imagina, rezaria bem ao Senhor e onde o seu trabalho não seria tão fatigoso. Sente saudades da família e se imagina os muitos dias que todavia deixou por suportar.

Evágrio em suas obras descreve muitas manifestações da acédia, e com frequência com muito humor, mas não queremos repetir todas. Nos limitaremos a mencionar aqui as mais importantes, seguindo uma ordem crescente por sua intensidade:

O primeiro sinal da acédia, e o mais seguro é uma certa Instabilidade interior, a necessidade de mudar. Contudo, os motivos ou argumentos podem ser os mais sutis, como ir ajudar o próximo ou visitar os enfermos, a família. A pessoa vencida pelo demônio acaba por abandonar a cela. Nesse último aspecto a acédia parece transformar o monge em um covarde(deilícia): o monge vencido, torna-se um fugitivo, um desertor. A virtude a que se opõe a acédia é a perseverança (hypomoné), incluindo não só a paciência, a resistência ante as provas, senão também a perseverança em sua cela e na vida solitária. Mas a inquietação e o sair da cela para perambular pelo mosteiro é a manifestação de um mal mais profundo, capaz de arruinar toda uma vida espiritual, a distração do pensamento. Ter fixo seu pensamento na recordação de Deus é, com efeito a verdadeira estabilidade que deve conservar o monge.

A acédia também pode se manifestar em uma exagerada preocupação com a saúde física e na tentação da gula. Bem seguro que o demônio do meio dia fazia com que o anacoreta que jejuava até as três da tarde, e que com razão podia temer que no deserto lhe faltaria o necessário. O mesmo Paládio, biógrafo de Evágrio, nos diz que seu mestre no fim de sua vida, sofria do estômago, por um regime alimentar muito rigoroso, e que tinha que mudar seu estilo de vida. Os autores posteriores com frequência vão notar a relação entre o demônio da acédia e o da gula.

Outro sinal é a aversão ao trabalho manual. Os mais antigos monges ganhavam a vida tecendo cestos e esteiras: era um trabalho fácil e repetitivo que permitia ter a mente livre para dedicar-se a oração, mas que com o passar do tempo podia tornar-se monótono. Cassiano desenvolverá muito essa aversão ao trabalho, até o ponto de fazer com que a tradição posterior identifique a acédia com a preguiça. Mas ao ser a acédia um fenômeno complexo, pode se manifestar ao contrário de uma atividade infatigável que, disfarçado de uma caridade cristã, não passa de uma ilusão perigosa, e que esta atividade desordenada não é senão um voo destinado a evitar encontrar-se frente a si mesmo ou diante de Deus a verdadeira caridade produz doçura, enquanto que a atividade que provém da acédia lhe causa uma amargura e intolerância.

A preguiça geral que emana da acédia logicamente acarreta a negligência no comprimento dos deveres da vida monástica, sobretudo na oração, que hoje chamaríamos de oficio divino. Uma tentação típica da acédia é o minimalismo: sente-se confrontado com uma situação que tudo parece excessivo, os salmos são demasiados e as pequenas tarefas muito pesadas. Porém, seguem tendo a certeza de que o cansaço pode ser um dos frutos da acédia e leva a uma tentação oposta a anterior: o maximalismo. Em ambos os casos, trata-se de uma tentação de exageros que Evágrio desmascara com extraordinária perspicácia, graças ao seu grande sentido de moderação.

E se o monge não abandonou a sua cela, a acédia tende a provocar um estado geral de desalento que pode levar inclusive a pôr em crise a sua vocação. Mas se o monge se acha ante a impossibilidade de sair de sua triste situação, pode chegar a afundar em uma autentica depressão nervosa, cujo os sintomas descrevem Evágrio com uma precisão perturbadora. É significativo que se fale de um comportamento infantil: pois comportamentos tão inesperados entre os ascetas revelam o risco de uma regressão psicológica. Sendo como uma vertigem entre o abismo entre a alma e Deus e a impotência de passar ou simplesmente suportá-lo, a acédia pode levar inclusive a pôr um fim na vida (suicídio).

Esta apresentação breve das diversas manifestações da acédia, tal como aparece nas obras de Evágrio, na mostra até que ponto a acédia é um fenômeno complexo e contraditório. Para Evágrio, o perigo da acédia consiste precisamente em que passe despercebida aquém padece. Pessoalmente não podemos permanecer indiferentes pela perspicácia de análises e pela atualidade da descrição. A acédia parece um mal intemporal, tão presente em nossos dias como tempo dos Padres do século IV! A descrição assusta, já que parece uma enfermidade difícil de curar. Porém Evágrio propõe alguns remédios, por certo surpreendentemente fácil.


A série continua na próxima semana com a quarta e última parte!



Dom João da Cruz, OSB é monge na Abadia da Ressurreição - Ponta Grossa/PR.

Estudou filosofia na PUC Minas e atualmente estuda teologia. Prega retiros na linha da espiritualidade para seminaristas religiosos e comunidades.

Contato: aquinomr@gmail.com

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